
O jubileu de um clássico
Italo Calvino, em seu célebre Por que ler os clássicos, diz, a certa altura, que os clássicos servem para nos ajudar a entender quem somos e aonde chegamos. Lavoura Arcaica, de Raduan Nassar, publicado em 1975, comemora seu jubileu no mês de dezembro, justamente no mês em que mulheres, homens, idosos, jovens e crianças saem à rua no Brasil, cinquenta anos depois, em atos contra o feminicídio. A fúria fulminante de Iohána contra sua filha Ana é um lembrete claro de que o patriarcado não tolera os excessos femininos – quer reais ou frutos da imaginação paranoica masculina.
O patriarcado pune Ana e não André
O romance é a confissão de André, o filho pródigo que, atormentado por seus excessos, abandona a família rural e, posteriormente, retorna à casa paterna. Ele faz uso desregrado do álcool, pratica a masturbação, a bestialidade e cultiva um amor incestuoso pela irmã, Ana. Contudo, as forças destrutivas e a raiva mortífera do patriarcado se voltam não contra o filho transgressor, mas contra a figura feminina. Ana, que já era o objeto de uma paixão desmedida, oscila entre a beatitude e a sensualidade, e é justamente a expressão de sua força feminina e de seu desejo peculiar que não será perdoada pelo pai e pelo irmão.
A tragédia atinge seu ápice em uma festa celebrando o retorno de André. Ana ocupa o centro da cena, toda enfeitada e sensual como uma dançarina oriental, atiçando o desejo e o ciúme do irmão Pedro, o primogênito e símbolo da sensatez. Pedro, que é o esteio da virtude na família, identificado à figura paterna, rende-se à fúria destrutiva de suas pulsões ao revelar o segredo incestuoso de Ana e André ao pai. Iohna, o patriarca e farol moral, ao ver todas as suas barreiras morais rompidas, descarrega a rajada de sua ira sobre Ana e a assassina com um alfange. Nesse sentido, Lavoura Arcaica realiza uma interpretação da ambivalência que estrutura o desejo da sociedade brasileira em relação à figura feminina, segundo a qual, quando não se pode subjugá-lo ou contê-lo, o destino final é a sua destruição.
Iracema, Ana e a identidade da nação brasileira
Iracema é o nome de um romance de José de Alencar, publicado em 1865, e também de uma das maiores heroínas da literatura brasileira. O Clássico de Alencar faz parte de um projeto maior do autor e da literatura nascente brasileira, em firmar a independência das letras brasileiras em relação às portuguesas e, mais além, da construção de uma identidade para a nação brasileira. Iracema é uma mulher Tabajara que, por paixão romântica, abandona seu povo e vai embora com Martin, de cuja união nasce um filho, metaforizando a identidade mestiça da nação brasileira.
Nasce a nação, morre a heroína
Walnice Nogueira Galvão, crítica literária e professora emérita da Universidade de São Paulo, em seu livro Lendo e Relendo, diz que Iracema estava longe de ser uma donzela típica da época; ela era uma guerreira que lutava em pé de igualdade com os homens, perfil bem diferente de Martin, que era fraco e indeciso, cujo mérito foi ser objeto do amor imerecido da tão desejada virgem dos lábios de mel, que tinha cabelos mais negros que a asa da graúna e talhe da palmeira. Ao final do romance, acompanhamos a partida do pai e do filho, e a morte da mãe heroína.
Cento e dez anos separam a guerreira tabajara — Iracema (1865) — da dançarina oriental — Ana (1975) — e, em pleno século XXI, o Brasil continua matando suas mulheres, sejam heroínas ou não. A leitura de Lavoura Arcaica, que recomendo por toda sua beleza artística, é um convite à reflexão: será que podemos inventar outras maneiras de amar as mulheres fora desse enquadramento que constitui não somente a configuração do imaginário brasileiro, mas de todo o patriarcado? Que a resposta se encontre na força do poema Todas as vidas, de Cora Coralina, por toda a sua potência de significação. Que todas as mulheres tenham o direito de viver todas as suas vidas possíveis, sem interferência de um home que defina seus destinos.

Fotos: Colaboração para o Jornal Online Alagoas
Francisco Neto Pereira Pinto é esposo da Ana Paula e pai do Théo e do Ravi. Doutor em Letras, é psicanalista, escritor e professor permanente no Programa de Pós-Graduação em Linguística e Literatura – Mestrado e Doutorado, da Universidade Federal do Norte do Tocantins. É autor de vários livros, dentre eles À beira do Araguaia.